A gente, o Maurício de Nassau, o Salgado e o Brega

Que bairro consome mais brega? A pergunta da reportagem era essa, mas o que ditou mesmo o tom do texto foi a nossa experiência com cultura, classe social, estereótipos, casas, prédios e pôr-do-sol

Por Bárbara Conceição, Sarah Teodósio e Vevé Prado

O relato é de Bárbara Conceição. Sarah Teodósio e Vevé são responsáveis pelo vídeo que estão disponíveis no blog da Revista Verbo.

Eis que todos os dias, em várias casas, bares, praças, ruas e avenidas, haverá um debate sobre o que é cultura e o que pode ser considerado arte? Mas quem é que de fato faz esses questionamentos? Existe uma “elite cultural” que determinará o que é de fato cultura? Quem pertence a esse grupo? Na compreensão de que existem culturas diversas e que elas não se sobrepõem, como grupo socioeconômicos diferentes podem consumir o mesmo produto cultural?

Nesta reportagem, tentamos traçar, não cientificamente, um paralelo entre o consumo da música brega nos bairros Maurício de Nassau e Salgado, ambos na cidade de Caruaru, Agreste pernambucano. Convidamos você para uma leitura desconstruída e leve de um assunto que, mesmo musical, nos mostra o quanto estamos separados uns dos outros, fazendo o consumo distinto do mesmo produto.

Vamos primeiro dar uma passeada no universo da música brega nos últimos 10 anos e apontar alguns recortes.

Majoritariamente, o brega em Pernambuco está separado das produções artísticas no que diz respeito à venda. O brega construiu um mercado próprio, particular e com especificidades.“Cabe pensarmos em modelos de negócios da música popular periférica como forma de sustentação econômica à parte das disposições formais e, portanto, institucionais de comércio e renda”, afirma o professor do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco Thiago Soares no livro “Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim”. Podemos dar como exemplo objetivo dessa rede, os famosos carrinhos de CDs e DVDs piratas. O cantor recifense Mc Sheldon relata que soube que a música dele era um sucesso quando ouviu tocar em um desses carrinhos. Essa é a forma mais eficiente de divulgação da música brega, produzida em grande maioria, na periferia e consumida nesta mesma localidade. É como se as pessoas se vissem. É a realidade diárias dessas pessoas sendo cantada. É poder transformar o que é colocado midiaticamente como desgraça em prazer.

Nesse sentido, cabe acreditar que só a população moradora de áreas periféricas é consumidora do brega?

Vamos pedir licença aqui, porque essa reportagem é também a oportunidade de falarmos com mais gente e, assim sendo, cabe aqui um questionamento: não usaremos, em momento algum, a expressão população periférica, porque a periferia se resume ao lugar que eles habitam e não diz sobre quem eles são. E ainda sobre isso o que é periferia?

 

periferia

substantivo feminino.

  • geom linha que delimita uma superfície; circunferência.

 

“p. de um círculo”

  1. geom superfície de um sólido.

 

A definição do dicionário sobre o que é periferia trata apenas de características geográficas e não leva em consideração as características econômicas, que acabam definindo sobre determinado lugar ser ou não periférico. Para estas situações, a pobreza caracteriza a periferia. Bairros pobres, mesmo no centro, são considerados periféricos.

Para conseguir avançar com as respostas para essas perguntas, fizemos o levantamento de alguns dados sobre os bairros Maurício de Nassau e Salgado e trataremos deles como o nosso recorte de consumo. Mas por que foram esses os bairros escolhidos?

Não tínhamos nenhuma certeza. Nenhum dado comprovado quando apontamos os dois bairros para fazer essa comparação no que se refere ao consumo do brega. Pobremente falando, nosso objetivo era observar um lugar pobre e um lugar rico e, portanto, tudo o que havia era a nossa impressão: bairro verticalizado x casas desorganizadas; saneamento básico “impecável” x esgoto a céu aberto. Era apenas visual e por que não dizer estereotipado? Só com pesquisa temos os dados reais, mas o que vemos diz muito sobre o que buscamos quanto informação.

Outro pedido de interrupção deste texto não corrido.

Escrevo da sala da minha casa. Ela fica entre os bairros Maurício de Nassau e Salgado. O meu quarto tem vista para um canal que corre a céu aberto e, na última semana, ouvi e vi cenas que, estatisticamente, estão ligadas à pobreza, à ausência do Estado que, por aqui, tem dado as caras apenas para reprimir. Estava deitada uns dias atrás e ouvi a frase vinda da rua: “se você se coçar, eu passo tudinho”. Fui em silêncio olhar da fresta. Vi a polícia, vi armas e meninos com as mãos na cabeça. Ouço diariamente daqui. Sinto cheiro do que eles chamam de “remédio”. Escuto gargalhadas.

Nesse exato momento, o cantor que faz seu “show” no bar aqui atrás, avisa para o público presente que tal dia “vai ter show do Conde do Brega”. Aplausos. Esse rapaz, o cantor, canta de tudo. De tudo mesmo. Já ouvi daqui, da minha sala, ele cantar Fred Mercury e, em seguida, Matheus e Kauan. Dias antes da “atuação pacífica” da PM, eu senti o cheiro. Ouvi as gargalhadas. Sorri. O cantor, no meio das suas misturas que, para mim não fazem qualquer sentido, começou uma música de Marisa Monte. De repente, ouço um coral. Eram os meninos. “Amor, i love you. Uh! Amor, i love you. Uh!”. E uma gargalhada rasgada; toda. Eles estavam rindo deles. Consumindo a mesma canção do bar ao lado. Sem entrar. Da beira do canal. No escuro. Onde ninguém vai entrevistá-los sobre que tipo de música eles ouvem.

De acordo com o IBGE, a população do Bairro Maurício de Nassau é de 15.536 pessoas, enquanto a do Salgado, 51.503. O instituto usa uma referência chamada *soma do valor do rendimento nominal médio mensal das pessoas responsáveis por domicílios particulares. Mas o que que isso quer dizer na prática? Em cada casa, é identificado um ou uma responsável, uma espécie de chefe de família. Essa soma é de mais de 45 milhões no Maurício de Nassau e quase 34 milhões no Salgado, mais de 3 vezes maior em população.

Com esses dados em mão, cometemos um erro que quero aqui, deixar registrado, por considerar importante, tendo em vista que este é um trabalho realizado academicamente. Fomos para campo, carregadxs de opiniões pré-formadas. Não estávamos de fato esperando que a pesquisa que faríamos fosse nos dar um resultado surpresa. Em resumo, havíamos definido que a população pobre era a consumidora da música brega.

Para conversar com moradores dos dois bairros escolhemos a Avenida Agamenon, em Caruaru. Domingo. Esta é a Avenida em que funciona uma área de lazer neste dia da semana. Em uma faixa, é proibido o tráfego e enche de gente, de todas as idades e hoje, de todas as classes. Digo hoje porque quando tive contato com este espaço, alguns anos atrás, ele era frequentado em maioria (e digo por observação) por famílias do entorno e não, elas não pertenciam a todas as classes.

Levamos um tempo para fazer a primeira entrevista. Ficamos olhando para as pessoas, procurando nelas, ainda na nossa opinião pré-formada (e por hora, definitiva), sobre as respostas que queríamos. Estávamos erradas, não apenas no que imaginávamos, mas também no método. O que vamos apresentar aqui, são informações de uma pesquisa exploratória que precisa ser realizada com maior profundidade.

Localizamos um grupo de três mulheres fumando em frente ao Shopping Difusora. O Shopping que pede documentação de jovens em sua entrada. Não de todos, claro. Só dos que apresentam alguma característica suspeita e quer coisa mais suspeita que cor de pele? As mulheres vestiam farda da loja em que trabalhavam e toparam responder nossas perguntas.

“Não, não. Não escuto não”. Primeira moça. Moradora do bairro do Salgado. E todas as nossas expectativas, as nossas certezas foram quebradas.

Nossas perguntam eram exatamente essas: 1. Você ouve brega? 2. Se sim, em que momento? 3. Os seus vizinhos escutam brega? 4. Nas festas da sua família, toca brega? 5. Se sim, em que momento da festa? 6. Você já pagou para entrar em alguma festa brega? 7. Se sim, lembra o valor do ingresso? 8. Você acha que brega é cultura?

  • Não, não. Por causa das letras, né? É muita baixaria.
  • Nem todas. Tem muita música que fala de amor.
  • É. Tem.

Terminaram os cigarros e nós fomos procurar mais pessoas. Muitas se negaram a nos responder, até que olhamos para a porta do shopping e vimos um moço branco, olhos claros. Ele faz parte diretamente do fim dos estereótipos com os quais iniciamos este trabalho. “Eu escuto brega todos os dias”. Bairro? Maurício de Nassau.

O que era para ser uma pesquisa sobre o consumo de brega no Maurício de Nassau e no Salgado se tornou uma busca da gente por autoconhecimento. A gente foi para a rua com muitas respostas na cabeça e as desconstruimos uma a uma. É por isso que esse texto é mais um relato da nossa experiência com nossos próprios demônios do que sobre o consumo de brega.

De todas as nossas entrevistas, apenas duas pessoas disseram que música brega não é cultura, alegando motivos de depreciação. As demais pessoas entrevistadas disseram que sim por uma questão de pertencimento se eu pudesse escolher uma palavra para definir.

De acordo com o antropólogo britâncio Edward Tylor, a cultura, por definição, trata de “todas as realizações materiais e os aspectos espirituais de um povo. Ou seja, em outras palavras, cultura é tudo aquilo produzido pela humanidade, seja no plano concreto ou no plano imaterial, desde artefatos e objetos até ideais e crenças. Cultura é todo complexo de conhecimentos e toda habilidade humana empregada socialmente”. Logo, sendo o brega uma construção intelectual de cunho popular, ele também caracteriza-se como tal, como popular. Bairro, Maurício de Nassau.

Muitas das pessoas entrevistadas associaram a hora que toca brega nas festa da família com a hora em que as pessoas “estão mais felizes”, fazendo menção ao consumo de álcool. No nosso pequeno exemplar de pesquisa, o brega não toca em todos os momentos, nem no dia a dia.

A minha casa, que fica entre os bairros Maurício de Nassau e Salgado, tem uma laje. Pelo menos 3 vezes por semana eu vou lá. Olho e penso na discrepância que é muito visível entre os dois bairros. Nos últimos seis meses, fotografei o pôr-do-sol que aconteceu durante este tempo no Maurício de Nassau (já sinto que está mudando de lugar central) e pensei, olhando para trás de mim, no Salgado. Todos esses prédios aqui são um obstáculo para que eles vejam o pôr-do-sol.

Hoje, 20 de novembro de 2017, finalizando este trabalho, fiz o giro que fiz tantas vezes e lá estava uma luz diferente. Perfeita, eu diria. Luz redonda. Central. Não como a ideia que eu tinha sobre o que encontraria nessa pesquisa. Clara.

Sábado tem show do Conde do Brega aqui perto. Ouvi anunciando ontem. E, como diria o povo que canta bregas como se cantasse hinos, o brega é tão rochedo, que nessa festa vai dar é todo o mundo. Talvez em Caruaru. Mas só talvez.

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